Blogue de gente de verbo fácil e língua afiada como uma espada de hara-kiri. Alimentado por: Conde, DeNunes, Dulcineia, Edgarganta, Gaja do Teatro, Goretti, Grace Kelly, Jaimemorto, Mousezinger, Romero, Stôra e Toni Ciganita

quinta-feira, setembro 22, 2005

Uma cadeira nos dentes

Entrei no Supermercado "Coca" em Monção, o meu olhar foi automáticamente direccionado para a secção dos produtos de higiene pessoal. Não conseguia perceber essa atracção misteriosa e irresistível. aproximei-me desse corredor com uma sensação de dêjávu. A cor amarela torrada começou a desfilar ofuscantemente perante os meus olhos, quase cegando a minha racionalidade. Estendi o braço para agarrar numa embalagem de cartão que me chamava desde o berço. Nesse dia tinha conseguido chegar ao destino!
À medida que a minha visão regressava ao normal, as letras sensuais e curvilínias impressas na caixa amarela tomavam uma forma familiar. tantas vezes no aconchego da minha infância eu tinha suspirado por aquele produto. Um impulso consumista precoce, um bichinho que estava cá dentro à espera de se soltar tomou a forma de um monstro pleno de alegria quando consegui ler "Pasta Dentífrica Couto". Não consegui conter os meus sentimentos, comecei a chorar logo ali, no meio do "Coca". Tinha na mão um dos símbolos da modernidade do nosso pequeno país. "Couto" era o nome, o som que me recordava tudo aquilo por que nós passámos. Uma descolonização inevitável e tardia, uma revolução com nome de flor, uma aprendizagem política a nível nacional completamente distorcida. Os momentos debruçados na janela do ford Escort dos meus pais, com o vento quente do verão lisboeta a bater na pequena cara enquanto berrava "APU, APU!" estavam ali, naqueles segundos, não a 25 anos de distância!
Apertei com força aquele objecto valioso enquanto esperava na bicha para pagar. Outra imagem surgiu na minha consciência, como uma chapada. Um homem de pele escura e africana segurava nos dentes uma pesada cadeira enquanto fazia um grande movimento circular com a cabeça, mostrando as suas capacidades dentárias selvagens. Duvidei naquele momento da simbologia associada aquela pasta de dentes. Mesmo assim fui em frente nos meus desígnios. Paguei. No caminho imaginei a cor branca da pasta, o seu sabor, a espuma purificadora. Cheguei a casa e tirei uma fotografia com uma cadeira nos dentes.

3 Comments:

Blogger pedro vieira said...

este post está mesmo bom, ai as partidas da memória que devidamente estimuladas voltam em golfadas. De repente lembraste-me o dia em que aos 3 anos o meu pai me levou às cavalitas para gritar "a luta continua, mota pinto para a rua". Ou, mais provavelmente no meu linguajar "a uta com ti nua, ota pito paa a ua".
A Couto, o Olex, a talhe de foice lembrei-me da laranjina C com o boneco equilibrista na garrafa que rola. Cuidado com as recordações senão um gajo ainda se emociona sem sentido.

4:09 da tarde

 
Blogger stôra said...

É tudo muito bonito, mas a pasta tem um sabor muito mau.

4:27 da tarde

 
Blogger Unknown said...

"Recordar é viver..." - Espadinha school.

6:20 da tarde

 

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