Os melhores Portugueses...
Um grupo de historiadores e investigadores, encabeçado por José Mattoso, divulgou um documento em que lamenta a desinformação e a manipulação que está em curso no programa "Os Grandes Portugueses". "A História de Portugal, nas suas complexidades e contradições, nas suas grandezas e misérias, seguramente merecia outra coisa", afirmam, denunciando que o grande objectivo da Direcção de Programas da RTP foi o das "audiências garantidas" e de responder "à persistente acusação de a RTP, enquanto serviço público, fazer muito menos do que deve pela cultura intelectual e artística do povo português", obtendo ainda a vantagem de "estimular louváveis sentimentos patrióticos."
Leia abaixo o documento na íntegra
OS GRANDES PORTUGUESES
Custa a crer que alguém, em seu perfeito juízo, se lembre de perguntar se Aristides de Sousa Mendes foi pior ou melhor que D. João II, e proponha decidir o dilema por meio do sufrágio popular. Mas a Direcção de Programas da RTP considerou genial a ideia de pôr à votação a preferência do público por uma de dez grandes figuras da História Nacional. Como em todos os concursos e competições, teria as audiências garantidas. Responderia de forma espectacular à persistente acusação de a RTP, enquanto serviço público, fazer muito menos do que deve pela cultura intelectual e artística do povo português, e teria a vantagem de estimular louváveis sentimentos patrióticos. Por isso, a Direcção de Programas escolheu, para abrilhantar o concurso, figuras mediáticas capazes de atrair mais público e criou programas para recriar ambientes históricos e reconstituir dramas e batalhas.
Mas teve medo de exigir demasiado dos telespectadores. Para compensar o esforço intelectual que lhes pedia, resolveu condimentar a disputa espalhando algum cheiro a sangue. Com ajuda dos comentadores de serviço, difundiu-se o boato de que o vencedor seria Salazar, e que, nas finais, ele se defrontaria com o seu grande adversário máximo, Álvaro Cunhal. O programa atrairia assim o máximo das audiências. Chamaria a atenção não só dos habituais consumidores de toda a espécie de concursos, mas também do público sensível à excitação das votações partidárias. Partindo do princípio de que, quanto mais rasteiro fosse o nível dos programas, maiores seriam as audiências, tratou de simplificar o quadro histórico e de diluir o rigor das referências. Assim, por exemplo, por meio de uma sensacional aproximação, procurou demonstrar que a maior glória de Afonso Henriques foi ter fundado um país que até tinha conseguido chegar às finais do Euro 2004. As batalhas que o nosso primeiro rei venceu, com armaduras do século XV, prefiguravam as vitórias portuguesas nos campeonatos internacionais, e até o milagre de Ourique anunciava tão «impossível» sucesso.
Estas subtis comparações fariam o público compreender intuitivamente o segredo da alma nacional e confirmar os seus sentimentos patrióticos. Os saudosistas do antigo regime seriam facilmente atraídos ressuscitando o primarismo apologético de um documentário dedicado a Salazar que mais parecia editado pelos serviços de propaganda do Estado Novo. Mas era imperioso evitar a contaminação das abstracções intelectuais. Impedir os académicos de colocar questões metafísicas e de suscitar debates de ideias. Excluir problemas confusos e distinções subtis. Também não era preciso recorrer a profissionais de um jornalismo de conteúdos, nem a verdadeiros criadores artísticos, como, por exemplo, os da área do teatro. Mais valia renunciar a reflectir sobre o que é a Nação e o que representam os grandes nomes da sua História. Bastava consultar os técnicos das audiências. Com toda a razão. São eles que, com as suas sentenças, nem sempre muito consistentes, é verdade, escolhem (ou julgam escolher) os grandes portugueses de hoje. Veremos se o futuro lhes dará razão.
Entretanto, como profissionais da investigação e do ensino da História, não podemos deixar de lamentar a desinformação e a manipulação que está em curso. A História de Portugal nas suas complexidades e contradições, nas suas grandezas e misérias, seguramente merecia outra coisa.
Os principais nomes que subscrevem o documento são os seguintes:
- José Mattoso, Professor Catedrático, FCSH/UNL
- Fernando Rosas, Professor Catedrático, FCSH/UNL
- Luís Reis Torgal, Professor Catedrático, FL/UC
- António Reis, Professor Auxiliar, FCSH/UNL
- Cláudio Torres, Arqueólogo
- Mirian Halpern Pereira, Professora Catedrática, Dep. História - ISCTE
- António Manuel Hespanha, Professor Catedrático, FD/UNL
- Romero Magalhães, Professor Catedrático FL/ Universidade de Coimbra
- Abdoolkarim Vakil, Lecturer in Contemporary Portuguese History,
King's College London
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